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Fé e Fúria: Reflexões e Comentários

Fé e Fúria – Embaúba FilmesFé e Fúria é um documentário filmado entre agosto de 2016 e julho de 2018, dirigido por Marcos Pimentel, produzido por Leo Ayres e com roteiro também de Marcos Pimentel e Ivan Morales Jr. Trata sobre as relações entre centros de candomblé, umbanda, religiões de matriz africana e igrejas evangélicas, sua força, suas armas, que vão desde o poder financeiro de ocupar espaços de acesso, até o poder bélico, com associações a grupos paramilitares, traficantes, facções, em comunidades do Rio de Janeiro e Minas Gerais.

De modo geral, o documentário apresenta relatos, depoimentos, de praticantes de religiões de matriz africana, assim como também ouve o lado de alguns representantes da fé evangélica, gerando alguns contrapontos que não colaboram muito para mostrar uma face tolerante, ou conciliatória, do movimento neo-pentecostal. Talvez valha como crítica inicial essa falta de visões que contrapõem os problemas apresentados. Não é como se elas não existissem, mas são poucas. Destaque, nesse caso, para os depoimentos de Fabrício, evangélico, que aponta sobre os erros e excessos de praticantes de sua fé. 

O documentário começa nos lembrando de uma história que repercutiu bastante no ano de 2015, da menina Kailane Campos, que recebeu uma pedrada na cabeça, na Vila da Penha, enquanto retornavam para casa. Um retrato da intolerância religiosa que gerou respostas e alçou a jovem à posição de símbolo da luta pela liberdade de fé. Este é um dos pontos mais interessantes do documentário: ao nos apresentar casos, ocorrências, crimes de um passado próximo, podemos traçar com a própria vivência a caminhada que tais atitudes tomaram no Brasil. Se o caso de Kailane ocorreu em 2015, não é difícil perceber como cresceu o preconceito e o fanatismo, dentro da política, dentro da sociedade. 

Dividido em três partes, o documentário organiza sua apresentação em uma longa introdução, que mostra a maior parte dos “casos isolados” (expressão costumeira para quem convive com o racismo estrutural) e reflexões mais gerais sobre as relações entre os praticantes das religiões de matriz africana e os evangélicos neopentecostais. Aqui observamos falas muito valiosas, como a de Mãe Flávia, que teve seu terreiro invadido pelo carro do filho do pastor, depois de um culto de sua igreja que ocorria do outro lado da rua do terreiro. Ela ainda convida o espectador a pensar no surgimento do movimento neo pentecostal (que naquela altura tinha seus 20 anos) e em como cinemas, teatros, supermercados, comércios de beira de rua foram sendo comprados por seus representantes, isolando cada vez mais os terreiros em fundos de quintal (o que não é demérito por si só, mas colabora com a “face pública” dos movimentos). Além disso, Mãe Flávia, em outro ponto do documentário, ressalta como o perfil evangélico ajuda na autoestima do indivíduo, caminhar na comunidade com a bíblia embaixo do braço, de roupa, costuma deixar a pessoa até mesmo longe do radar da polícia, em suas duras corriqueiras nestas áreas, enquanto alguém da “religião de preto” não conta com a mesma sorte. 

Fé e fúria – Sem Rumo

A segunda parte do documentário, Gritos de Guerra, dá uma noção sobre movimentos, expressões, que buscam angariar apoiadores aos “lados” envolvidos nestas disputas. Desde os grupos evangélicos que se aproximam da música, da dança, de expressões tipicamente contrárias aos seus preceitos (coisas “do mundo”, como diriam) como o funk e mesmo as vestimentas que reformam o tradicional “visual do crente”. É aqui que se discute o surgimento dos “Gladiadores do Altar”, da Igreja Universal, como a estética encarnada em ação. Pastor Marcelo, neste ponto do documentário, joga luz sobre a postura belicosa destas igrejas neopentecostais em um reflexo do que se lê no Velho Testamento, traduzindo o comportamento nessa atitude aguerrida, como uma disputa por almas. Por outro lado, Babalawo Ivanir argumenta que não existe guerra, afinal não existe equilíbrio nas forças envolvidas, o que se têm, na verdade, é um massacre, um genocídio cultural e, muitas vezes, literal. 

Armas, a terceira parte do documentário, é a mais densa e complexa. E aqui, a arma não é mais simbólica, cultural, e sim literal. Aqui somos apresentados aos casos de comunidades, especialmente no Rio de Janeiro, que passam pela situação de serem controladas por poderes paralelos, criminosos (traficantes, milicianos). Somos apresentados a inúmeros outros casos de depredação, ataque, destruição de um patrimônio religioso da fé de matriz africana nestes lugares, realizados pelos próprios traficantes (ainda que nem toda comunidade controlada reaja da mesma forma, como mostra a diferença entre o Terceiro Comando e o Comando Vermelho no documentário). 

Crítica | Fé e Fúria - CriCríticos

Alguns depoentes tentam explicar essa saída de grupos religiosos de matriz africana destes espaços e a permanência, fortalecimento, do movimento neopentecostal. Falava-se, no passado, muito sobre o ex-traficante, a ex-prostituta, como pessoas recuperadas pelas igrejas, mas aos poucos essa visão mudou e se tornou complexa e como estas figuras foram sendo absorvidas pelos movimentos religiosos. Não é como se não houvesse relação entre candomblecistas, umbandistas, e outros, com traficantes em áreas de comunidade. Havia, até mesmo por uma questão de pura e simples sobrevivência e convívio. Essa relação termina, se enfraquece, quando existe a entrada de setores neopentecostais no sistema prisional. É considerado até mesmo, por alguns depoentes, que as relações entre tráfico e igreja passa também pela lavagem de dinheiro, pela necessidade de fazer o dinheiro circular, afinal a figura do traficante, do chefe, é uma figura isolada, que se fecha na comunidade, pela dificuldade de trânsito livre em áreas da cidade. 

Por fim, vale pensar no perigo destes problemas serem vistos como isolados de comunidades, favelas, do Rio de Janeiro. O racismo estrutural do Brasil ajuda a transformar esta questão em “problema de preto”, “problema de pobre”, o que faz a situação se retroalimentar. Até porque, os verdadeiros traficantes não estão nestes espaços, mas sim nas áreas nobres, com o poder político em suas mãos.

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A última parte, Outras Armas, busca refletir este “estado das coisas”, apontando como a direta mudou, politicamente. Se tínhamos antes uma esquerda barulhenta e uma direita calada (neste período em que o documentário foi gravado, com o crescimento de um sentimento conservador ganhando força), hoje os papéis se inverteram. A mensagem final é de um agridoce, com mensagens de esperança das novas gerações de religiosos de matriz africana, mas uma visão do futuro próximo. Como as filmagens de Fé e Fúria foram terminadas no ano de 2018, muito do que é dito nesta última parte soa como um vislumbre sinistro do nosso futuro. Futuro este que ainda se arrasta em 2022.

A direita cresceu no Brasil, personagens como Bolsonaro e Damares Alves ganharam apoio revelando muito mais do que se gostaria de admitir de um lado naturalmente conservador de muitos brasileiros e estamos aqui, nas vésperas de uma eleição. Escrevo este texto no dia 07/10, esperando o dia da votação de segundo turno, na esperança de que um pouco do conservadorismo se dissolva, mas sabendo que personagens “terrivelmente evangélicas” já garantiram seus lugares no senado. 

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