A recente publicação do volume de contos “Breve inventário de pequenas solidões” do escritor Tiago Feijó, pela editora Penalux, vem reafirmar aquilo que sobre o autor escrevi, à proposito de outras obras suas. Em 2016 salientei que o senhor Feijó possui rara habilidade de “urdir um leque de estratégias narrativas composto de marcas próprias, dando-lhes singularidade, e revelando um ficcionista que sabe exatamente o que faz”. Mais adiante acrescentei: “A proposta que Tiago Feijó faz, se nos afigura como uma proposta de reflexão sobre o que está implícito como motivação da criação literária. Feijó lança esta proposta como quem sopra um vento fresco através das copas das árvores, a nos acenar com a evidência de que a verdadeira arte é inabitual, excêntrica e se revela também por meio de insolitudes.”
“Insolitudes” era o título de sua obra de então. Encontramos o autor agora neste “Breve inventário de pequenas solidões” a reunir dez narrativas nas quais podemos identificar uma, mais amadurecida ainda, inclinação do autor pela busca daquele sentido de totalidade com relação ao sujeito humano, fazendo entrecruzarem-se memória, psicologia e metafísica. E o faz, bom ressaltar, no melhor estilo dos grandes ficcionistas, posto que incorpora o fluxo de consciência de suas criaturas dentro da estrutura dos textos, ressaltando numa nítida consciência do descompasso existente entre a realidade e sua representação imediata. Queremos com isto salientar que o autor faz perquirições existenciais levando em conta que o bicho-homem, animal esquecido, tem por outro lado e a seu favor, a lembrança, justamente para que possa na regularidade da ocorrência, prometer/projetar um futuro. Aí a novidade prazerosa para o leitor que souber abstrair e ampliar o insight que alguns textos proporcionam de maneira mais acentuada. Sejamos mais claros. Em todos os textos, aqui de maneira mais límpida, ali de maneira mais velada, há uma análise das relações entre memória e esquecimento, partindo do princípio de que é possível articular tais concepções com a solidão. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 –1900), inclusive, deitou e rolou sobre o assunto.
Do tema “macro” e norteador do volume de contos a “solidão”, que inclusive se colhe já no título, poder-se-ia simplesmente pensar apenas em abandonos existenciais ou no descontentamento com o mundo em que vivemos, visto que é forte e geral a insatisfação que nos chega. Ou ainda que o móvel do autor repousa no fato de que perdemos a esperança no coletivo e por isso nos voltamos para dentro de nós mesmos, passando a viver com nossos pensamentos, já que não há mais como buscar solução externa. Claro que existem pequenas porções desses elementos na obra, já que são circunstancias de nossa época de individualismo exacerbado. Mas há uma luz no fim do túnel.
A preocupação do autor, parece-nos, desce a níveis mais profundos, sugerindo a todo momento a concepção de uma realidade mais complexa que demonstra que nossa consciência é uma totalidade que não se restringe ao momento atual, mas engloba como atualidade presente, o passado e, além disso, o futuro como horizonte de possibilidades e expectativas, muito embora isto não fique explicitado em algumas narrativas. O leitor deve fazer a sua parte…
No conto “O telefonema”, ponto alto do livro, um homem se vê na difícil situação de avisar ao irmão do falecimento da mãe. Ocorre, todavia, que por conta de conflitos familiares, perdera o contato com o outro e sequer tem seu número do telefone, presume-se que vive no exterior. E o leitor então, pela pena hábil do autor, vai tomando ciência de pequenos acontecimentos nas vidas dos personagens (que são retomadas por meio de memórias voluntárias e/ou involuntárias), e que vão constituir em última instância, a caracterização de suas personalidades, seus momentos de queda e sublimação. O desfecho dessa narrativa é de um conteúdo humano tocante.
“Em dueto”, a memória é a ténue linha da narrativa dando-nos conta das marcas da violência familiar e seus reflexos na vida de uma criança. “Solenemente” retrata uma história de abandono (in)voluntário de um homem que conta por outro lado, com a lealdade de um bando de cachorros com quem passa a viver. Em “Ele é só um menino”, temos a memória mais uma vez orientando a sequência de trágicos acontecimentos na vida daqueles seres humildes e de baixa condição social, que se perdem em meio às miragens de um mundo que descamba a passos largos para a criminalidade e uso de drogas. Típico exemplo de descarte social.
Mais uma vez o senhor Tiago Feijó acerta a mão nessa sua última obra, ao apresentar ao leitor textos que urdem delicadas relações entre memória, esquecimento e solidão articulados ao nosso crescimento interior. Memória como processo poético inerente ao humano. Esquecimento levando em conta que necessitamos de um tempo vagaroso e distante dessa correria amalucada na qual estamos imersos, e finalmente, a solidão, momento único de afastamento que os solitários precisam fazer para consolidar o balanço da própria existência e reconhecer os instantes que moldaram a substância de seus destinos.
Eis então as condições relacionadas com leveza e respiração de ar puro que propiciam reflexão libertadora. Aí o humano se singulariza porque olha para trás e para frente com a mesma intensidade. Em suma e concluindo: a memória é atividade que amplia percepções ao servir à vontade de assimilação e expansão, atualizando o passado como afirmação da vida. Esta a grande mensagem residual que fica para o leitor atento.
Livro: Breve inventário de pequenas solidões – Contos de Tiago Feijó, Editora Penalux – Guaratinguetá / SP, 2024, 100 p. ISBN 978-65-5862-680-0
Links para compra e pronto envio: